domingo, 27 de junho de 2010

Democratizar o dinheiro, a terra, a palavra

Por Emir Sader

O problema maior da transição da ditadura à democracia no Brasil é que a democracia se restringiu ao sistema político. Não foram democratizados pilares fundamentais do poder na sociedade: terra, bancos, meios de comunicação, entre outros.

O Brasil da democracia teve assim elementos fortes de continuidade com o da ditadura. A política de meios de comunicação, por exemplo, nas mãos de ACM, o ministro de Sarney, completou a distribuição clientelística de canais de radio e televisão e favoreceu a consolidação do monopólio da Globo – os próprios Sarney e ACM, proprietários de emissoras ligadas à rede da Globo.

Não se avançou na reforma agrária, nem foi tocado o sistema bancário. É como se a ditadura tivesse sido apenas uma deformação de caráter político aos ideais democráticos. Mas nem os agentes imediatos do golpe e sujeitos políticos do regime – as FFAA – foram punidos. Como se tivesse sido “um mal momento”, até mesmo “um mal necessário”, como diriam as elites políticas tradicionais, que seguem por ai.

No entanto o golpe e a ditadura foram extraordinariamente funcionais ao capitalismo brasileiro. O processo que se desenvolvia de democratização política, econômica e social do país não interessava nem aos capitais estrangeiros, nem aos grandes capitais brasileiros. Estes, concentrados em áreas monopólicas, não se interessavam no enorme mercado popular urbano que o aumento sistemático do poder aquisitivo dos salários propiciava, nem no mercado popular rural, a que a reforma agrária apontava.

O eixo da indústria automobilística no setor do grande capital industrial e outros setores que produziam para os setores da classe média, para a burguesia e para a exportação, se coligaram com os golpistas no plano político, para impor, mediante o golpe, um modelo que atacava duramente o poder aquisitivo dos salários.

O golpe os atendeu imediatamente, com intervenção em todos os sindicatos e com a política de arrocho salarial. Foi uma “lua-de-mel” para os empresários, uma super exploração do trabalho, mais de uma década sem aumento de salários, sem negociações salariais. Bastaria isso para entender o caráter de classe do golpe e do regime e militar.

A dura repressão aos sindicatos e a todas as formas de organização do movimento popular contaram com o beneplácito do silêncio dos órgãos de comunicação, que pregaram o golpe e apoiaram a instalação do regime de terror que comandou o país por mais de duas décadas.

A democracia reconheceu o que os trabalhadores – com os do ABC na linha de frente – haviam conquistado: a legalização da luta sindical, junto ao direito de existência de centrais sindicais, a legalização dos partidos, o direito de organização dos movimentos populares, entre outras conquistas.

Mas os pilares do poder consolidado pela ditadura ficaram intocados. Ao contrário, seu poder monopólico sobre a terra, o sistema bancário, os meios de comunicação, se fortaleceram.

Esses temas ficam pendentes: quebrar o monopólio do dinheiro, da terra e da palavra – como algumas das grandes transformações estruturais que o Brasil precisa para construir uma sociedade econômica, social, política e culturalmente democrática.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Futebol e economia: a dupla secação do Brasil

Depois de um tempo fora, Blog da Atitude e Resistencia volta a ativa, em clima de Copa do Mundo, na espectativa do jogo decisivo de Outubro...



Existe uma dupla secação do Brasil em curso.

A primeira, mais fácil de identificar, está no futebol, enquanto rola a bola na Copa do Mundo. Plagiando e ampliando Drummond, ela tem planos municipal, estadual, federal e internacional.

No plano municipal, o mais mesquinho, estão aqueles de olho no fracasso do Dunga porque ambicionam o seu lugar, ou um lugar no plantel da Seleção, sentiram-se preteridos etc. Já no estadual, há um pouco da continuação da secação feita em cima do Felipão em 2002, um técnico oriundo desta improbabilidade futebolística chamada Rio Grande do Sul. Lembro-me de comentário – irônico no bom sentido – feita por grande comentarista esportivo de S. Paulo, segundo o qual, quando o Grêmio ganhara o Campeonato Brasileiro, a Argentina podia comemorar, pois um time seu era o vencedor...

Já no federal misturam-se duas coisas. Uma, mais propriamente futebolística, parte daquele eterno chororô de que os meninos do nosso futebol-arte não foram convocados, que futebol é alegria etc. É, mas também, a gente sabe, é gana de ganhar. E quem ganha é um time, não é um conjunto de estrelas, ou o brilho de uma só – como se queria afirmar tanto nas esperanças do quadrado mágico na Copa anterior, quanto na campanha orquestrada pela Globo para que Romário fosse convocado em 2002. O quadrado nada teve de mágico, só de quadrado mesmo. E em 2002, se Romário ficou de fora, o Brasil deu uma dentro.

A outra secação do plano federal é, de novo, aquela segundo a qual o presidente Lula já levou a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Só falta agora ele levar o caneco de 2010. Aí sim ele vai virar candidato ao Premio Nobel, nem que seja o da Sorte Grande, pensa essa mentalidade súcuba e incuba ao mesmo tempo.

Já no plano internacional a secação é contínua. Se o Brasil ganha apertado de uma seleção veloz, aplicada, com uma disciplina de Partido Comunista dos velhos tempos, que montou um muro defensivo de oito jogadores com dois de quebra como líberos na intermediária, ah, é porque o time não presta, não é brilhante, não é isso, não é aquilo.

É verdade que o nosso time só começou a ganhar no segundo tempo quando acordou para a arqui-verdade, muito mais velha do que o futebol, que só tem pouco mais de um século de idade, verdade que veio da arte militar, segundo a qual, quando o inimigo está fortemente entrincheirado no meio, deve-se atacar pelos flancos. Ou pelas pontas, com os pontas e laterais.

Ponta: essa realidade que o futebol pós-moderno esfarelou ou derreteu.

Mas no fundo, bem no fundo dessa secação internacional contra o nosso time jaz aquele sentimento eurocêntrico e hoje perplexo de: como? Se o futebol nasceu no continente de Homero ao tempo da Rainha Vitória, como ele deu-se melhor do outro lado do Atlântico, e em país de "crioulos", em todos os sentidos da palavra "crioulo"?

Mas há a segunda secação, que se dá no plano político e econômico. Seu último round deu-se com as declarações do economista-chefe para a América Latina do Institute of International Finance, Frederick Jaspersen, sobre as futuras eleições brasileiras, feitas em Viena, alguns dias atrás.

O IFF é uma instituição fundada em 1983 por 38 grandes bancos de alcance mundial, com sede em Washington, em 1983, logo depois da grande crise da dívida internacional na América Latina. Seu presidente atual é Josef Ackermann, do Deutsche Bank, e o Vice, William Rhodes, do Citibank e do Citigroup.

Jaspersen previu que provavelmente Dilma Rouseff ganhará a eleição, e que isso seria danoso para o Brasil, pois sua vitória significaria mais gastos públicos, descontrole da inflação, alta de juros, política industrial centrada nas empresas estatais, agências regulatórias sujeitas à pressão política e mais algumas outras coisas abominadas pelos financistas dessas instituições. Financistas, diga-se de passagem, cuja atuação equilibrada e de bom senso nos levaram à maravilhosa situação financeira por que ora passa o planeta.

Ao contrário, a vitória do candidato José Serra significaria um endurecimento do controle fiscal, queda dos juros, desvalorização do real, menos ênfases nas estatais, mais no setor privado e uma política tributária para encorajar investimentos privados, leia-se, arrocho na desigual tributação direta ou indireta (por corte de subsídios e investimentos públicos) do consumo, que onera os mais pobres, e uma igualitária desoneração fiscal da renda individual ou corporativa para quem ganha muito.

Na reunião das instituições financeiras em Viena o economista do IFF levou uma dura resposta do presidente do BNDES brasileiro, Luciano Coutinho, segundo quem Dilma tem uma visão consistente sobre a sustentabilidade macro-econômica. Jaspersen recusou-se a treplicar.

Nisso não está apenas em jogo a eleição de outubro no Brasil. É que o Brasil saiu-se melhor da crise financeira instalada pelo comportamento desarrazoado das instituições financeiras exatamente por fazer tudo ao contrário do que os experts dessas finanças recomendam que deva ser feito, e que agora está em aplicação na zona do euro para "proteger a moeda" e também para proteger a honra das dívidas públicas para com o sistema financeiro europeu, norte-americano e um pouco também do japonês.

Ou seja, para salvar os bancos e poupar-lhes prejuízos, o que levaria, provavelmente, a uma revolta de acionistas físicos e jurídicos que, como nos velhos tempos do século XVIII, embora simbolicamente, exigiriam que cabeças rolassem nessas instituições.

Por essas e por outras razões, para esse pessoal "o Brasil não pode dar certo". Como no futebol: mas e agora, que a tourada espanhola perdeu para o relógio suíço?