terça-feira, 3 de março de 2009

Um ato contra a tortura


Guilherme Scalzilli

(04/02/2009)

Em curto prazo, talvez ainda neste ano, as dívidas humanitárias contraídas pela ditadura militar receberão moratória definitiva. Interesses conjugados articulam blindagens políticas e legais para isolar o assunto na segurança das tragédias pretéritas às quais não convém retornar.

O processo de sepultamento dos crimes praticados pelo regime acompanha a obsolescência de instrumentos jurídicos para puni-los, o gradativo desinteresse da sociedade, a morte dos torturadores e a desmobilização das vítimas sobreviventes. Com o passar dos anos, a indefinição e a inércia foram aliadas fundamentais da impunidade; agora resta apenas o último passo rumo ao esquecimento.

Apenas o Supremo Tribunal Federal pode encerrar o assunto. As instâncias intermediárias do Judiciário resistem a tecer interpretações que poderão ser derrubadas no futuro. Mesmo assim, já prevalece entre os juízes o entendimento de que as violências da ditadura prescreveram ou foram absolvidas pela Lei de Anistia e de que inexiste no país legislação suficientemente clara sobre os crimes contra a Humanidade.

O STF não tem pressa de mergulhar numa controvérsia tão espinhosa. Mas o presidente Gilmar Mendes, que trouxe um preocupante viés conservador ao tribunal, dá sinais de que pretende confirmar os efeitos da Lei, em momento politicamente apropriado. E quando isso acontecer, a decisão será irreversível. Não cabe argumentar que órgãos como a Corte Interamericana de Direitos Humanos podem imiscuir-se em decisões da Justiça brasileira, porque não podem. Seus protestos isolados seriam seguidos pelas bravatas orgulhosas dos magistrados locais, e logo outras efemérides ocupariam o noticiário.

Parte da dificuldade em mobilizar a opinião pública advém de interpretações equivocadas sobre as indenizações reparatórias. Além dos questionamentos quanto aos valores concedidos e aos méritos dos benefícios, existe um enganoso consenso de que eventuais sanções retroativas seriam exageradas ou redundantes, gerando uma cadeia viciosa de interdependência entre a reparação dos danos sofridos e a absolvição criminal dos mesmos. As próprias nomenclaturas jurídicas e institucionais que embasam e regulamentam o mecanismo indenizatório remontam aos fundamentos doutrinários da Lei de Anistia.

Torna-se imperativo, portanto, romper a hegemonia dessa excrescência legislativa. Qualquer apego a determinações lavradas nos estertores da ditadura é tolo e tecnicamente insustentável. Anistias só podem ser concedidas para beneficiar cidadãos ou grupos que atuam fora do âmbito estatal. Governo que indulta a si mesmo já representa um paradoxo inaceitável; manter a auto-absolvição mesmo depois da queda do regime autoritário ultrapassa qualquer padrão de racionalidade.

Tortura jamais será “política”. Há décadas o direito internacional considera-a crime hediondo, imprescritível e intolerável, em quaisquer circunstâncias. No Estado democrático de direito não há perdão para torturadores e ponto final.

Entretanto, se os parlamentares, juristas e magistrados do país referendam tais obviedades (em consonância com a própria legislação brasileira), como explicar que os crimes da ditadura permaneçam intocados? Podemos arriscar duas justificativas principais, ambas associadas a certo raciocínio, aparentemente conciliatório, que defende enterrar o passado e “seguir em frente”, sem revanchismos ou agendas retrógradas.

Em primeiro lugar, a tolerância com as barbáries passadas induz à impunidade dos funcionários públicos que continuam a praticá-las. Todas as delegacias brasileiras, dos rincões às metrópoles, escondem alguma forma de tortura; ela é aplicada cotidiana e sistematicamente em cidadãos mantidos sob custódia policial. O beneplácito silencioso das autoridades reflete a ilusão de que a prática é justificável contra determinadas ameaças e necessária para suprir as carências materiais das corporações, fornecendo-lhes um canal punitivo alheio às imprevisíveis deliberações judiciais.

Tamanha ilegalidade (para não citar o abjeto sistema carcerário) exigiria uma ampla e profunda revolução nos paradigmas da segurança pública, algo que demanda recursos, competência e vontade política. Claro, é mais cômodo varrer o assunto para debaixo do tapete da História e fingir que agentes estatais não cometem atrocidades em plena democracia.

Uma segunda frente de resistência à revisão da Lei de Anistia opera na imprensa ligada aos grandes empreendimentos midiáticos. O golpe contra João Goulart e a ditadura que se seguiu foram apoiados pelos maiores grupos informativos da atualidade: as organizações Globo, a futura Folha de São Paulo, o Estado de São Paulo, o Jornal do Brasil, o Correio Braziliense, o Zero Hora, a editora Abril e dezenas de veículos com predomínio regional. Some-se a tantas grifes respeitáveis as manifestações isoladas de colunistas e a participação de lideranças político-partidárias ainda em plena atividade. Revolver o passado não seria positivo para os negócios de muita gente.

Supervalorizar a influência das Forças Armadas sobre os Poderes civis, criminalizar as guerrilhas e humanizar os carrascos são estratégias do jornalismo comprometido com a ditadura para embaralhar o debate e ressuscitar mitologias ameaçadoras que remetam à ruptura institucional de 1964. O mesmo papel desempenha esse apego cínico à absurda Lei de Anistia, como se ela fosse um marco de congraçamento universal a ser preservado em formol.

Apenas uma mobilização popular em grande escala será capaz de reverter esse quadro: atos públicos de repercussão nacional, que demonstrem a atualidade do tema e a força aglutinadora dos grupos envolvidos. As ações (comícios, passeatas, abaixo-assinados) devem ser simultâneas, realizadas em data simbólica, nas maiores capitais do país. Com divulgação maciça, infra-estrutura apropriada e a participação de artistas, políticos e outras celebridades, os eventos ganhariam importância e visibilidade.

A legitimidade das reivindicações seria garantida pelo envolvimento de sindicatos, associações de classe, conselhos profissionais, representações estudantis, sociais e religiosas, além de organismos internacionais ligados aos Direitos Humanos. Os debates inevitáveis obrigariam a imprensa a esgotar essa pauta indigesta, suscitando posicionamentos públicos, denúncias e polêmicas. A pressão popular e o constrangimento midiático obrigariam o STF a deliberar com base no interesse coletivo e na preservação da memória do Judiciário.

O país se aproxima de um momento histórico fundamental para consolidar sua redemocratização, transmitindo às gerações futuras um patrimônio de cidadania, justiça e transparência. O tempo dirá se somos dignos desse privilégio.

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